Semana retrasada comentei com vocês aqui sobre meu romance “Dois cigarros”, lançado em 2018 pela Gulliver Editora. Foi neste texto sobre inteligência artificial, uma experiência com esse negócio de prompts, criação de imagens etc. E lancei uma enquete para saber se meus parcos leitores queriam um capítulo de amostra grátis. A abstenção foi gigantesca, apenas 115 votos entre os quase cinco mil assinantes, demonstração clara de que ninguém curte, mesmo, o voto obrigatório. De qualquer forma, 74% disseram que sim, queriam ler um trechinho. Então, aí está. É o segundo capítulo. Não sei se faz muito sentido, se isso vai levar alguém a se interessar pelo livro. Mas promessa é dívida! Se gostarem, “Dois cigarros” pode ser comprado comigo mesmo, com autógrafo, dedicatória e, a critério do comprador, folhas perfumadas! É só me mandar um e-mail: flaviogomes@warmup.com.br. Tomara que gostem!
O texto da semana exclusivo para os assinantes dos planos pagos vai mais para o fim da semana, porque amanhã, feriado, estarei correndo no Velo Città. E se você ainda não assina esta newsletter, é só clicar aí embaixo.
Capítulo 2
Estaciono na transversal, uma ladeira, e deixo o carro engatado por segurança, as rodas viradas para a esquerda coladas no meio-fio – vai que. O hotel de esquina, paredes verdes e janelas brancas, se chama Central. Toda cidade mineira tem um Hotel Central. É tarde e não tem ninguém na rua de paralelepípedos e calçadas estreitas. Toco a campainha, uma luz fraca se acende lá dentro. O rapaz, um jovem de pele curtida no sol, deve ter trabalhado na lavoura antes de conseguir o emprego no Central, ou talvez ainda trabalhe e faça apenas num bico noturno, abre a janelinha no meio da porta e diz pois não, meio desconfiado, fazendo foco com os olhos de quem acabou de acordar e deixando no ar um leve hálito de cachaça. Você tem um quarto?, pergunto. A essa hora?, ele. Uai, só chegamos agora.
O menino gosta do uai, abre a porta, nem era tão jovem assim, tinha um bigode ralo sobre os lábios finos, eu entro na frente. Nossa bagagem se resume a uma mochila pendurada no meu ombro esquerdo. O senhor tem mala no carro? Só trouxe a escova de dente, respondo, e você ri de novo, agora olhando para o chão e provavelmente me achando um tonto.
O café é das seis às nove. Daqui a pouco, ele diz. Vocês são casados? Não, digo rápido, sim, fala você mais rápido ainda, em cima da minha resposta. Foi a que valeu, porque ele pediu desculpas e disse que só tinha quarto com duas camas de solteiro naquela noite, que o último com cama de casal estava com problema no chuveiro, amanhã vem o rapaz consertar, quer dizer, hoje, né, porque já é hoje. Não tem importância, eu digo, e antes que você resolva falar para ele que não tinha problema nenhum tomar banho gelado pego a chave, presa num enorme chaveiro de acrílico com o emblema do Central e o número do quarto: 12, é só subir a escada e virar à esquerda. A janela dá frente para a rua aí do lado, faz menos barulho. O senhor parou o carro ali? Parei. Tem problema não, amanhã é sábado e pode parar.
Na escada, você foi primeiro, eu atrás. Ainda não tinha olhado direito para você. No carro, nossos olhares se cruzaram algumas vezes como que pedindo um ao outro: não precisamos falar nada agora, depois a gente conversa de tudo. No restaurante, comemos também em silêncio, evitando olhares mais demorados e trocando banalidades – tá gostoso?, quer queijo?, esse vinho é bem suave, eu prefiro um pouco mais seco, açúcar ou adoçante?
Pequena, como eu – foi a primeira coisa que reparei. O andar, firme e decidido. Pernas bonitas e bronzeadas, assim como os ombros e o pescoço. Você tinha tomado sol em algum lugar por aqueles dias. A camisetinha verde meio folgada não fazia justiça à sua cintura. Uma mulher bonita. O cabelo estava preso num coque esquisito com uma piranha por causa do calor e notei algumas gotas de suor na nuca. E uma tatuagem em japonês. Esses carros são quentes, me desculpei, ainda que você não tivesse reclamado de nada. Sem se virar para trás, esticou o braço para que eu pegasse sua mão e, me puxando escada acima, falou: faz mal não, a gente toma um banho.
O quarto era pequeno e asseado. As camas estreitas, de estrado de madeira clara e colchões de espuma, um criado-mudo entre elas e um guarda-roupa de duas portas encostado na parede, com uma mesinha e uma cadeira. Tudo novinho, até cheiro de tinta, com algum esforço, dava para sentir. Acho que o Central passou por uma reforma, pensei um pensamento sem sentido, mais um. Vivo fazendo isso. A porta do banheiro era estreita, daquelas tipo camarão. Você entrou, olhou, abriu os braços num gesto teatral, virou para mim e decidiu: vou tomar o banho mais delicioso da minha vida. E sorriu de novo.
Cada sorriso me deixava bobo. Porque não era uma risada escancarada de uma boca cheia de dentes, na verdade era um quase-sorriso com a boca entreaberta, apenas, os dentes branquíssimos só fingindo que queriam aparecer, mas de olhos enormes. Não sei explicar direito como os olhos podem sorrir mais que a boca, mas era seu caso. Tem toalha aí, tem sabonete, xampu?, eu querendo ser prático e eficiente, dei dois passos em direção ao banheiro, passei de lado para não trombar com seus braços abertos, e só tinha toalha, vou lá embaixo buscar sabonete e xampu, falei, e você riu mais uma vez, e quando eu tentava desviar de novo de seus braços abertos você passou a mão no meu cabelo de um jeito que, naquele instante, tive a certeza de que jamais sentiria de novo tamanha ternura vinda de qualquer outra alma vivente neste mundo.
Desci e perguntei se o hotel tinha sabonete e xampu, tem que comprar, moço, quanto é?, me dá um de cada, vieram um Palmolive e um Seda. Quando entrei no quarto, você já estava no chuveiro, cantando baixinho alguma coisa que não consegui identificar. Acho que alguma canção em francês. Consegui xampu e sabonete vou colocar aqui no chão, falei alto para ser ouvido, mas o banheiro era tão pequeno que você afastou a cortininha de plástico e esticou o braço molhado sem dizer nada e sem parar de cantar baixinho, e sem entrar no banheiro, pela porta, passei o xampu, primeiro, e o sabonete, depois, à sua mão. Vou descer para fumar, avisei, e você respondeu lá do chuveiro, não demora.
Peguei o cigarro e o isqueiro na mochila e desci mais uma vez, precisando de mais alguma coisa, moço?, não, só vim fumar aqui embaixo. Saí para a rua e me sentei numa das cadeiras de plástico branco que o Central gentilmente disponibilizava aos seus hóspedes para tomar uma fresca no final da tarde. Fumei dois cigarros e dezessete minutos depois, porque todos sabem que fumar um cigarro em ritmo normal leva oito minutos, e foram dois com um intervalo de um minuto entre cada, voltei.
A luz já estava apagada e você, deitada e coberta com um lençol. Nua, supus: o sutiã e a calcinha jogados na cadeira, a camiseta verde e o short jeans pendurados no encosto. A janela estava aberta e por ela entrava uma luz amarelada da lâmpada de sódio do poste da rua. Em silêncio, tirei o tênis, a camisa e me sentei na cama olhando para você, que estava deitada de lado, as costas voltadas para mim. A respiração era de quem estava morta de cansaço. Tínhamos viajado por mais de quatro horas num carro quente e barulhento, ainda que quando eu olhasse para você, a janela aberta, os cabelos voando – o coque com a piranha você só fez no restaurante --, os óculos, o batom vermelho, você parecia que estava no conversível de Thelma & Louise cruzando a América.
Não sei quanto tempo fiquei assim, te olhando, até que também me senti cansado. Levantei devagar para a cama não estalar e te acordar, preocupação ridícula porque o barulho do chuveiro seria maior ainda, entrei no banheiro, fechei a porta camarão, peguei o Palmolive e o Seda que você tinha deixado na pia, liguei a água e tomei o banho mais delicioso da minha vida.
Escovei os dentes, porque realmente tínhamos trazido nossas escovas e tubos de pasta de dente, cada um o seu, um Colgate e um Oral-B, me ligo nesses detalhes, me enrolei na toalha, também sem nenhuma muda de roupas, apaguei a luz, voltei ao quarto iluminado pela luz da rua que atravessava a janela, você continuava na mesma posição, contornei sua cama, me certifiquei de que você não me veria sem roupa, pendurei a toalha na maçaneta da porta e entrei rápido debaixo do meu lençol.
Minha única preocupação, a partir dali, era arrumar um jeito de acordar antes de você, me vestir e sair correndo do quarto, para que nossos corpos nus não se vissem no brilho da manhã. Mas não deu tempo de bolar um plano que deixasse claro meu pudor. Antes disso, apaguei.
O livro
“Dois Cigarros” foi escrito entre 2016 e 2017 e publicado no começo de 2018. Meu editor, Joubert Amaral, é um leitor antigo de minhas coberturas de Fórmula 1. A ideia de escrever um romance, essa sempre tive. Faltavam tempo, coragem, ideias. Então, um dia, lancei a provocação no Twitter. Era a rede social que mais usava, com quase 200 mil almas/arrobas/perfis falsos/robôs me seguindo. Fiz uma enquete (outra…) para saber quem compraria um livro escrito por mim. Não lembro os números, mas os que responderam que sim, comprariam, somavam umas dez mil pessoas. Fiquei animado, porque dizem que no Brasil qualquer livro que venda três mil exemplares é um best-seller. Aí escrevi.
Vendeu mais do que três mil, não sei precisar quantos. Cheguei a vê-lo exposto em livrarias de aeroportos, achei o maior barato. A Cultura, que ainda não tinha falido, comprou um lote de 800. Não sei nem se pagou. Mas não me rendeu um Jabuti, nem uma cadeira na ABL, nem resenhas em jornais. É mais um entre tntos livros que passam pelo mundo despercebidos.
Antes de o Joubert decidir publicar, mandei os originais para a Cia. das Letras, que não se interessou. Fiquei puto. Eu não entendia nada do mercado editorial e, pretensioso, achava inadmissível alguém não gostar do que escrevi.
“Dois cigarros” é bem escrito e gostoso de ler, sem falsa modéstia. Não me deu dinheiro, mas prazer — era uma experiência literária, quis vivê-la. Fiz três noites de autógrafos, em São Paulo, Rio e Belo Horizonte. Muita gente apareceu. Trabalhar na TV, na época, ajudou. Mas ser jornalista esportivo, não. Acho que editores, em geral, não levam muita fé na capacidade que jornalistas que escrevem sobre futebol e corridas têm de fazer ficção.
Seja como for, publiquei. Eu morava no Rio quando os primeiros exemplares saíram da gráfica, em Minas Gerais. Joubert mandou alguns para minha casa, pelo correio. Chegaram num fim de tarde. Fiquei muito emocionado quando peguei o livro nas mãos. Tinha uma bicicleta e perto do meu prédio, na Barra, havia um bar que costumava frequentar, num lugar chamado Parque das Rosas. Vivia vazio. Tinha lá um prato que eu gostava, uns pedacinhos de filé enrolados no bacon com queijo dentro. Fiquei sozinho lendo meu livro, comendo filé enrolado no bacon e tomando caipirinhas até a última página.
Foram três caipirinhas. Dois cigarros e três caipirinhas. Nada muito edificante, mas voltei para casa feliz e meio tonto na minha bicicleta.
Me parece ser um bom livro! Tanto que presenteei um amigo! Tão logo termine a leitura sou o próximo!
Vou ler de novo... E vou indicar pra minha esposa, que se tornou uma ávida leitora nos últimos meses.